sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Artigo de Paulo Afonso Linhares

‘ESQUERDA HEINEKEN’ 
É A VOVOZINHA!

Paulo Afonso Linhares

É por demais decantada a incapacidade do burguês de compreender o humor, segundo feliz parêmia de Hermann Hesse, no seu Der Steppenwolf (O lobo da estepe, já referido por mim noutros textos). Enfim, o espírito burguês, no máximo, atinge às raias do cinismo quando busca o humor que, na acepção latina, quer dizer líquido.

O espírito verdadeiramente burguês e conservador tem enorme dificuldade de acessar essa fluidez, essa ‘felicidade líquida’ que constitui um estado de espírito que se caracteriza pelo equilíbrio psicológico e emocional da pessoa que consegue vislumbrar graça e riso nos diversos aspectos da condição humana; não raro, o humor representa sempre perspectivas de rupturas de paradigmas e da construção de novos cenários da vivência humana.

Que os bondosos leitores deste escrito de quarta-feira de cinzas não se iludam: aquele famoso riso das hienas é apenas o esgar doloroso desses bichos que comem fezes e somente transam uma vez por ano...

A alma conservadora, contudo, não desiste de utilizar, na defesas de seus interesses políticos e propósitos ideológicos, imagens que chegam próximo às fronteiras do humor sem jamais ter energia suficiente para transpô-las. Assim é que, nas lutas político-ideológicas que trava, tende sempre lançar mão de formas diversionistas e raciocínios que desqualificam e diminuem seus adversários, mesmo que por vezes resvalem para grosserias e agressões à condição de existência da pessoa. Tratar, por exemplo, o ex-presidente Lula de “Nove Dedos”, como fazem seus adversários, nas redes sociais e fora delas, não deixa de ser um menoscabo ridículo à dignidade da pessoa humana, pois, não é razoável imaginar que alguém em sã consciência deixe esmagar em engrenagem mecânica parte de seu corpo para disso extrair vantagem qualquer. Pura maldade. Humor negro.

No atual momento em que, na sociedade brasileira, se confrontam projetos políticos radicalmente antagônicos na corrida presidencial de 2018, afloram absurdos de variados calibres. No passado, quando existia ainda a União Soviética e seus satélites, os conservadores de muitos matizes, no Brasil, lançavam contra seus adversários o anátema de “esquerda caviar” para simbolizar, em forma de gracejo, uma desqualificação dos inimigos da ordem burguesa e liberal, da qual não escapavam nem mesmo os leitores de Stendhal que, por manterem exemplares do instigante “O vermelho e o negro”, em suas humildes bibliotecas, foram arrastados para as enxovias da ditadura de então e lá muitos até perderam suas vidas ou foram marcados para sempre por insanas sessões de tortura física e psíquica.

Nos tempos de hoje, o caviar não faz mais sentido com o desmoronamento da tal “cortina de ferro” e o fim de “guerra fria”. No pouco definido cenário político brasileiro de agora, à sombra dos poderosos rebenques judiciais, a imprensa conservadora e os reacionários de diversas extrações brandem seus porretes contra uma “esquerda Heineken”. A inteligência rarefeita desses energúmenos chegou a tal resultado à vista de uma torturante estrela vermelha que estampa o rótulo da primeira cerveja premium da Holanda que, ao lado do nome da família do seu criador, Gerard Heineken, há 145 anos (1873-2018), tornou-se um dos símbolos nacionais daquele país e distribuída em mais de 190 países.

E agora, com o inimaginável segundo lugar da desconhecida escola de samba Paraíso do Tuiuti (ou simplesmente PT...) no desfile do carnaval 2018, do Rio de Janeiro, que levou para a Sapucaí um enredo com duríssima crítica social e até exibiu um avatar vampiro do presidente Temer, essa raiva vai aumentar. Comemoração certamente puxada à verdinha Heineken! E pensar que até bem pouco tempo diziam os brancosos da tosca direita verde-amarela que a Itaipava era de Lula...

Verdade é que a tal estrela vermelha da Heineken, nada tem de comunista, socialista ou petista, como, aliás, essa empresa esclareceu na resposta ao Governo do nacionalista e ultraconservador Víktor Orbán, da Hungria, que, tendo como pano de fundo uma briga comercial da multinacional holandesa com pequena cervejaria local, tentou proibir “o uso comercial de símbolos totalitários como a suástica nazista, a foice e o martelo, a cruz com flechas e a estrela vermelha, utilizada desde 1917 como símbolo comunista”, segundo notícia veiculada no El País, da Espanha (28 mar 2017). Os conservadores tupiniquins seguramente ‘beberam’ desse aguado chope magiar, para ter mais uma diarreia mental.

Aliás, a estrela vermelha como emblema comunista somente foi usado a partir da Revolução Russa de 1917, a partir de famoso diálogo que teria ocorrido entre Leon Trótsky e Nikolai Krylenko. Nestas paragens, tornou-se logomarca do Partido dos Trabalhadores. Daí a pecha atual de “esquerda Heineken”. Isso pode até parecer uma chiste inocente e bem humorada. Qual nada: nem uma nem outra coisa; é só veneno destilado. A invectiva é maldosa quando, no mínimo, associa a militância política de intelectuais, artistas, profissionais liberais e outros segmentos da classe média urbana brasileira, aos convescotes de mesa de bar regados a cerveja.

Vale lembrar que, no passado como hoje, os refutadores do pensamento socialista sempre tentaram (e ainda tentam!) desqualificar as ideias do filósofo alemão Karl Marx por ter sido ele um bebedor de cerveja, alguém que nunca trabalhou e que viveu às custas de sua esposa rica e do dinheiro franco de seu amigo, o também filósofo Friedrich Engels. Bobagens.

Quem leu qualquer relato biográfico de Marx, por mais ralo que seja, sabe que isso é idiotice por várias razões: beber cerveja jamais foi símbolo de devassidão ou algo assemelhado, tanto que algumas das melhores marcas da velha Europa eram feitas por ordens religiosas (Franziskanen, Dominikanen, Benediktinen etc.) e democraticamente apreciadas, até hoje, por todas as populações de países europeus.

No velho mundo, quem não bebe cerveja, vai de vinho, de conhaque, de vodca... Não sem razão, o comediógrafo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), prêmio Nobel de Literatura (1925), de finíssimo e inigualável humor, galhofa, na comédia Candida (de 1894, III): “I am only a beer teetotaller, not a champagne teetotaller!” Mais ou menos assim, numa tradução livre, “sou apenas abstêmio de cerveja, não um abstêmio de champanhe”. Estranho que o velho Shaw, na terra da famosa Guinness, a cerveja irlandesa mais famosa do mundo, cuja forma mais clássica exala um marcante sabor, com o equilíbrio perfeito entre o forte amargor e o doce suave, com toques de café e chocolate. Além das Pale e Bitter Ales, e as Porters/Stouts, também mundialmente famosas...

O casamento de Marx com Johanna "Jenny" von Westphalen, filha do Barão von Westphalen, pouco ou nada lhe acrescentou materialmente, mas, lhe deu uma feliz e profícua convivência de 40 anos, além de sete filho. Marx trabalhou profusamente para escrever uma obra de milhares de páginas durante toda a sua vida, tendo ao lado sua Jenny que, a despeito de todas as dificuldades financeiras e de precária saúde, também copiava, penosa e copiosamente, os manuscritos do marido, que conformariam um dos pilares do pensamento ocidental.

Mesquinharias direitistas essas críticas ao filósofo de Trier, que deve e merece ser enfrentado no campo das ideias, não com tais bobagens. No mínimo, por lei natural e inalienável direito, como lembra Sófocles, na peça Antígona, cabe-lhe, sim, um obsequioso descanso na sua tumba londrina do bucólico Hyde Park...

            Assim, denominar simpatizantes da esquerda em geral, os petistas ou os tais “lulopetistas”, de classe média, como “esquerda Heineken”, o que mais pode fazer é aumentar o consumo dessa cerveja que já tem uma presença importante no mercado mundial (ocupa o sétimo lugar no market share global) e no brasileiro (com a recente aquisição da Brasil Kirin – dona das  marcas especiais de cerveja Baden Baden e Eisenbahn e da Skin e Devassa  – a Heineken salta para o segundo lugar entre as maiores cervejarias do Brasil, com uma participação de quase 19%), tudo mesmo é para alegria dos acionistas da cerveja Heineken, a preferida dos diabéticos e demais glico-inimigos graças à fama do baixíssimo teor de açúcar em sua composição, o que decerto poderia até impor, para desconsolo dos ‘coxinhas’ de todas as frituras, uma releitura daquela famosa frase de Marx-Engels, do tonitruante Manifesto Comunista, de 1848: “Cervejantes de todo o mundo, uni-vos”!

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