segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Artigo de Paulo Afonso Linhares

UM EPÍLOGO PARA FIDEL

Paulo Afonso Linhares

Uma partida anunciada: Fidel, um dos maiores líderes da História mundial, morreu placidamente aos 90 anos, amado por seu povo como poucos líderes tiveram o privilégio de sê-lo, goste-se ou não dessa figura que impactou a cena política mundial a partir do final dos anos 50' do século XX até hoje. Quase seis décadas de governo em Cuba que, com acertos e erros, deram nova feição às relações internacionais da América Latina com a mais poderosa nação do mundo, os Estados Unidos da América, distante apenas míseras 90 milhas náuticas do território cubano, isto sem falar, claro, no enclave absurdo que é a base norte-americana de Guantánamo, implantado em um dos extremos da ilha e hoje a servir de presídio para os islâmicos que, ao entender das autoridades dos Estados Unidos da América, são acusados de terrorismo ao redor do mundo.
Na "guerra fria" a antiga União Soviética bancava a economia de sua aliada caribenha, a um custo anual de 5 bilhões de dólares norte-americanos. Com a débacle do império soviético o dinheiro dos russos desapareceu e os cubanos entenderam que teriam que voar com suas próprias asas, inserindo-se na economia global, a despeito do bloqueio econômico e político imposto pelo Estado norte-americano. No front da política externa cubana o ganho mais significativo foi o reatamento das relações diplomáticas com os norte-americanos, inclusive com a visita a Havana do presidente Barack Obama. E tudo isto se deu pela sabia compreensão, por parte de Fidel Castro, de que seu tempo havia passado e, já em provecta idade, abriu mãos de sua condição de homem poderoso de Cuba quando delegou a seu irmão, Raul Castro, a condução dos negócios de Estado, após o seu distanciamento das instâncias do poder. E saiu de cena com o propósito de preparar os cubanos para um novo momento, para viver "sem Fidel".
Aliás, como político astuto que era, Fidel preparou a sua saída de cena a régua e compasso; há quase uma década vestiu o pijama pois sabia que sua permanência no poder atrapalhava mais do que beneficiava os cubanos. Milimetricamente 'controlou' sua própria morte, muito antes de fisicamente morrer. Para evitar, quem sabe, futuras violações dos seus restos mortais deixou expresso o desejo de cremação imediata de seu corpo, no que foi atendido: apenas suas cinzas, em pequena urna de madeira, voltaram para Santiago de Cuba. Impôs, desde logo, mais uma derrota a seus inimigos de todos os matizes, que não terão jamais o funesto 'prazer' de quebrar seus ossos a marteladas, como aconteceu noutras paragens. Igualmente, externou o desejo de que não fossem construídas estátuas suas em Cuba. Habilmente justificou que seria para evitar "culto à personalidade", prática muito presente nas estruturas de poder de inspiração stalinista. A intenção de Fidel é óbvia: como as possibilidades de ocorrer em Cuba o que se passou em vários países do leste europeu, com o fim dos regimes socialistas do tipo soviético, quando estátuas de ícones do marxismo-leninismo foram decapitadas, derrubadas e destruídas ritualisticamente por turbas enfurecidas.
Fidel previu que mudanças irrefreáveis poderão ocorrer na Ilha em futuro bem próximo, e que, em acontecendo, poderá trazer hordas de "gusanos" (como são pejorativamente chamados os anticastristas que vivem nos EUA, eis que na língua de Cervantes significa "verme") que retornarão com a sede iconoclástica de não deixar pedra sobre pedra dos velhos símbolos plantamos pelos barbudos que desembarcaram do Granma há quase seis décadas para definitivamente dar novo rumo à História do povo cubano. E Fidel será, como Martí ou o Che, apenas um símbolo muito difícil de alcançar. Ou depedrar. E se fez cinzas o "comandate jefe" como carinhosamente era chamado pelos cubanos, o voluntarioso combatente da "playa Giron", certamente para evitar essas desagradáveis surpresas futuras, tornou-se fisicamente improfanável.
A surpresa foi Raul Castro que, embora tenha sido a vida inteira apenas um 'segundo violino', sempre à sombra do irmão poderoso, ao assumir o poder, mostrou-se um governante hábil, moderado e aberto às mudanças que devem ser iniciadas em Cuba, mormente após o reatamento das relações diplomáticas com o vizinho Estados Unidos da América. Ressalte-se, aliás, que a vitória de Donald Trump impôs uma enorme expectativa sobre qual será a direção dessa política bilateral. Se o indicador for as diatribes lançadas por Trump contra Fidel quando da morte deste, o panorama não mudará em nada no que diz respeito ao anacrônico bloqueio mantido pelos norte-americanos há mais de cinco décadas. Um dado importante nessa história: a inesperada vitória do candidato republicano no Estado da Flórida seria resultante dos votos anticastristas contra Hilary Clinton, em represália à atitude do presidente Obama de promover a reaproximação com Cuba.
As mudanças políticas, sobretudo, após Raul Castro deixar o poder, em qualquer circunstância, parecem mesmo inevitáveis e mais do que previsíveis. No entanto, não se pode imaginar transformações que desfigurem de modo radical o atual modelo político-social de Cuba que, ao longo de seis décadas e com todas as enormes dificuldades impostas pelo bloqueio norte-americano, tem suas bases consolidadas. Os poderosos ventos soprados do grande vizinho do norte certamente mudará o perfil da economia, no rumo do capitalismo, porém, não necessariamente imporá uma completa derrocada do regime controlado pelo Partido Comunista de Cuba, a exemplo do que ocorreu na China, que liberalizou a economia, mas, manteve a estrutura política comunista. 
Paradoxalmente, a 'era Trump', que começará em janeiro de 2017, dirá muito do rumo a ser seguido por Cuba: se mantidas as bases da atual distensão nas suas relações com os EUA, será o rumo desejado pela comunidade latino-americana em particular e, no geral, pelo mundo civilizado; se a direção for a concretização das promessas do líder republicano, será um deus-nos-acuda de trevas o bloqueio. Para onde irão tantos sonhos de liberdade do povo cubano? Por onde caminhará esse povo determinado, heterogêneo e forte? Os decisivos investimentos na educação básica, superior e na pesquisa, apontam positivamente no sentido de que ele saberá decidir soberanamente para onde quer ir. E os anacronismos das ruas, dos belos edifícios decrépitos ou dos automóveis fora de época: Fords, Dodges, Buicks, Packards, Chevrolets etc., como ficarão? Serão peças de colecionadores de carros antigos, de museus ou simplesmente "morrerão" definitivamente nos ferros velhos, sem choro nem vela, com se espera que se tornem meras lembranças as "libertas" de racionamento de gêneros alimentícios que representam décadas de escassez para as famílias cubanas, todavia, garantidoras de um 'mínimo existencial' para todos.
Os turistas certamente sentirão falta dos velhos automóveis, após etílicas incursões à Floridita ou à Bodeguita del Médio e haverão de clamar pelo santo Hemingway dos "mojitos" e "daiquiris". Para alegrá-los ainda restarão a monumental Habana Viera, o belo Caribe de águas azuis, ademais da salsa, da rumba e do merengue, frenéticas expressões musicais, que continuarão a ritmar os corações cubanos.
Mesmo antes da morte de Fidel Castro já era visíveis as mudanças em Cuba: a bela Havana, depois de muitos anos de marasmo se veste de novas construções, se faz enorme canteiro de obras. As transformações virão inevitavelmente. Difícil é saber como ocorrerão e no que podem resultar de positivo para os cubanos. Agora, talvez, apenas haja o cerimonioso silêncio do Malecon, onde o turbulento Caribe se derrama por sobre essa Havana de tantos contrastes. Para onde caminhará esse povo simples, mas, de férreos propósitos de lutar por um porvir harmonioso e feliz? Como se dará o abraço mortal do poderoso capital nessa ilha de tanta rebeldia? O que restará do legado da Sierra Maestra? Altivo, buscará o povo da bela ilha de Cuba horizontes sonhados por Marti, Máximo Gomez ou Fidel? Tantos serão os caminhos, nessa histórica encruzilhada.
Uma coisa é certa: somente aos cubanos cabem decidir que rumos devem tomar, finda que seja a 'era Fidel'. Qualquer que seja essa decisão, o mundo deve aceitar a escolha que decorre do inalienável direito de autodeterminação do povo de Cuba, de forjar o seu próprio futuro. Cuba tem passado de glórias, tem presente de lutas e se projeta para realizar o futuro no caminho de uma sociedade baseada na dignidade da pessoa humana que seja economicamente próspera e socialmente justa. Ave, Fidel.


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