domingo, 9 de março de 2014

Artigo de Paulo Afonso Linhares

DEVAGAR QUASE PARANDO

Paulo Afonso Linhares

Cabe ao Brasil, nas atuais circunstâncias do seu processo de desenvolvimento, aquilo que nas rodas bem-humoradas denomina-se como “Lei Dorival Caymmi”, alusão ao grande compositor brasileiro que deu cara e corpo àquela face simpática da preguiça de todos os baianos: “A preguiça uma condição humana. Como se justificaria o bocejo, essa coisa tão linda, tão gostosa, se não houvesse a necessidade de repouso, do ‘sooono’? Que beleza! E nada tira o prazer de você acordar e se espreguiçar porque amanheceu”, disse certa vez em entrevista à Revista da Folha (edição de 07/04/1996). Essa é decerto a boa faceta do “devagar quase parando” sintetizado no riso largo e tranquilo desse ícone inconteste da música e da cultura do Brasil que foi Caymmi.

Existe, todavia, uma face dura, perversa, inadmissível e pervertida do “devagar quase parando”, que nada tem a ver com o bom Caymmi e sua Bahia de todos os santos, sons e apimentados quitutes, mas, infelizmente, com o Brasil inteiro. Com efeito, um dos gargalos quase intransponíveis da administração pública brasileira, nos dias atuais, é a paralisação total ou a demora na conclusão de caríssimas obras públicas e, em muitos casos, extremamente necessárias às comunidades, enquanto instrumentos de políticas públicas mais amplas ou mesmo na forma de ações diretas de atendimento às demandas sociais de um país cuja maioria da população ainda não superou o estágio da pobreza, como é o caso dos programas habitacionais tocados nos diversos níveis de governo. Certo é que, frequentemente, a mídia tem noticiado um enorme passivo de obras públicas abandonadas antes de serem finalizadas ou, em casos mais graves, de obras públicas já concluídas, porém, sem qualquer uso, entregues ao abandono e à deterioração, tudo em flagrante e criminoso descaso com o dinheiro público.

Inegável que, nesta última década o Brasil, embora em índices modestos, tem retomado o crescimento econômico, sob o influxo inicial de uma conjuntura externa favorável e pelo fortalecimento de um consumo interno historicamente reprimido, com a incorporação de enorme contingente da população ao mercado formal. Entretanto, setores vitais da economia nacional, a exemplo da complexa infraestrutura de transportes, que passou por um longo período de baixos investimentos, pouca manutenção e nenhum planejamento estratégico capaz de estruturar políticas integradoras, em diversos níveis (nacional, regionais e locais), dos modais de transporte, para fundar uma das bases consistente da economia, que é a logística.

É bem verdade que, no caso dos transportes, há tentativas bem intencionadas do governo federal de acabar com alguns gargalos, sobretudo das obras paralisadas de estradas, ferrovias, portos e aeroportos, todavia, tudo esbarra na pesadíssima estrutura da burocracia federal, ademais da atuação muitas vezes até nociva, tanto dos órgãos de fiscalização externa de gastos públicos (Tribunal de Contas da União e Tribunais de Contas Estaduais), além dos diversos órgãos públicos (superpostos) que exercem poder de política na área do meio ambiente (IBAMA, IDEMA/RN, Corpo de Bombeiros etc.). Por paradoxal que pareça, na atuação das cortes de contas brasileiras tem destaque, atualmente, o acompanhamento e a fiscalização de obras públicas paralisadas, nos âmbitos federal, estadual e municipal, inclusive com a elaboração de cadastros e diagnósticos acerca das situações das obras, os motivos das paralisações e as condições de uso dos bens.

Trágico é que o Nordeste setentrional brasileiro já viva mais um ciclo de severa estiagem, a entrar para o quarto ano, sem que as águas da transposição de bacias hidrográficas, do Rio São Francisco para alguns rios de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, tenham dado o ar de suas (enormes) graças. As rigorosas fiscalizações dos órgãos ambientais, do Ministério Público e da Controladoria, aliadas às exigências do Tribunal de Contas da União (TCU), além das incompreensíveis objeções (ou maldições...) de Dom Luiz Cappio, bispo de Barra, na Bahia, têm constituído barreiras até agora intransponíveis para que as águas do Velho Chico cheguem a estes Estados nordestinos e possam fazer algo bem parecido ao que as águas da bacia do Rio Colorado para as regiões desérticas do Colorado, Nevada e Califórnia, nos Estados Unidos da América, a despeito das críticas que essa transposição acumula, inclusive como exemplo a não ser seguido, o que não deixa de ser um exagero muito típico de alguns ambientalistas.

Os exemplos citados apenas são parte de uma lista enorme de paralisações de obras públicas que somam prejuízos contados em bilhões, qualquer que seja a moeda empregada, de preciosos recursos públicos. Algo que o Brasil tem de superar é acabar com esse perverso desperdício de dinheiro público, com eficientes ações de planejamento e execução das obras públicas, inclusive, para evitar as veias abertas de gastos que alimentam a espiral da corrupção, praga até agora não debelada e que permeia toda a estrutura do Estado brasileiro, como uma terrível maldição.  As paralisações (criminosas) de obras públicas devem ter um fim. O tempo, além de ser senhor da razão, como tantos dizem, também custa caro à nação, quando se traduz em obras públicas paralisadas. Neste caso, com perdão do mestre Caymmi, devagarinho nem sempre é mais gostoso.

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