sábado, 11 de janeiro de 2014

Artigo de Paulo Afonso Linhares

DE PELOURINHO VIRTUAL
Paulo Afonso Linhares
            
Quase que a lua cai uma banda com a declaração do cineasta dinamarquês Lars von Trier, que competia pela Palma de Ouro do Festival de Cannes, França, com o filme “Melancholia” (Melancolia), dada por ocasião da conferência de imprensa sobre a obra, quando para espanto geral afirmou que “(…) Entendo Hitler, simpatizo um pouco com ele.” Bobagem. Lars von Trier conseguiu o desiderato que era chamar atenção para seu filme inequivocamente insosso e que, em resumo, trata do fastio que arrasta certo tipo de abuso do sexo e da própria sexualidade; essas coisas bem cranianas muito típicas da frigidez nórdica e incompreensível para nós, cá nos trópicos, mormente porque sequer “existe pecado do lado de baixo do Equador”, como reza antiga canção de Chico Buarque.
            É interessante como os valores de cada época marcam as pessoa e ditam comportamentos. Não custa lembrar que, em meados dos anos ‘30 do século XX, o político austríaco Adolf Hitler tornara-se o “enfant gâté” (algo como criança mimada.) daqueles que olhavam com pavor os avanços do comunismo a partir do leste europeu; era, assim, o perfeito antídoto contra os seguidores do marxismo-lininismo, mormente a sua principal personificação, Josef Stalin. Não era segredo a admiração por Hitler que nutria o rei Eduardo VIII, do Reino Unido (cujo reinado foi de 20 de janeiro a 11 de dezembro de 1936) e seu irmão e sucessor, rei Jorge VI, entusiasta da política de aproximação com a Alemanha nazista do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain. Tanto entusiasmo que o historiador John Grigg descreveu esse comportamento do rei como "o ato mais inconstitucional tomado por um soberano britânico neste século”.  Nestes prados tupiniquins, parcela majoritária das elites e o próprio governo Getúlio Vargas (que entregou a ativista política Olga Benário Prestes à Gestapo, posteriormente morta em campo de concentração) eram admiradores de Hitler e do nazismo.
            Claro, com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, Hitler passou a ser visto como uma das almas mais sebosas da História, repositório humano de todos os vícios e taras imagináveis. Sem dúvida, uma enorme mudança de paradigmas ocorreu.  Todavia, seis décadas depois eis que uma imagem positiva de Hitler (e mesmo do nazismo) tem sido reconstruída. Pouco antes de morrer, Michael Jackson afirmou que “Hitler foi um gênio”. A cantora Madonna até tem usado imagens nazistas e do próprio Hitler no seu “MDNA World Tour”, inclusive numa apresentação que fez – pasmem! – em Tel-Aviv, Israel. Parece que as demonizações de algumas personagens históricas findam como toscas e insuficientes abordagens de fenômenos sócio-políticos bem mais profundos e abrangentes. Com muita razão e acerto a filósofa Hannah Arendt, sem concessões à mediocridade das demonizações fáceis, traçou com fortes tintas um retrato definitivo do Estado totalitário (no livro “As Origens do Totalitarismo”), mesmo porque ela sabia – e sofreu na própria pele – que a ideologia do Nacional-Socialismo (o movimento nazista) e suas consequências práticas transcendiam à figura singular de Adolf Hitler.
            As demonizações fáceis sempre são perigosas. A propósito, repercute muito, ainda, o episódio envolvendo o desembargador Dilermando Mota, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, em que discutiu asperamente com um empregado de estabelecimento comercial da capital, com intervenção de outro cliente. Ao que parece, um fato que envolveu, de parte a parte, cabeça quente e falta de urbanidade. Porém, de repente um pequeno e não menos lastimável episódio – sem precisar apurações de culpas – tomou ares de conflito estelar. E o desembargador Dilermando passou a sofrer um bombardeio inusitado a partir das redes sociais, como se tivesse cometido o mais grave dos crimes. Aliás, em que pese o recato que deva ter qualquer autoridade pública, mormente os magistrados (justo por sancionarem condutas delitivas), nos espaços da vida privada, fato é que o “affaire” da Padaria Mercatto nada tem a ver com o exercício da função pública por parte do cidadão Dilermando Mota. Esse fato poderia até merecer sancionamento moral (jamais um linchamento moral, como vem ocorrendo), porém, estaria longe de afetar o desempenho do múnus público que lhe é afeto.

Aliás, há cerca de duas décadas que acompanho a trajetória desse magistrado: nada de mais ou de menos na vida de um cidadão de origem humilde e negro que, pelo esforço, tem superado muitos desafios e hoje, condignamente, compõe a mais alta corte judiciária deste Estado. Não há razão, aqui, para defesa graciosa ou de algum modo interesseira. Decerto, muito desse burburinho da Mercatto decorra do preconceito que muitos têm em face desse homem de origem humilde e negro que se tornou desembargador. Fosse ele puxado para louro, um branco leitoso e dono de algum dos sobrenomes ilustres desta taba do índio Poti, nada teria ultrapassado as caras roletas daquela padaria chique. “Delenda Dilermando”, todavia, até agora é o que indagam histéricos os paladinos da cidadania no tuíte e no feicebuque, esse novos pelourinhos virtuais. Uma coisa odiosa, também. Isto, claro, sem entrar no mérito dessa arenga besta de café-da-manhã-na-padaria, mais um modismo de Natal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários críticos sem identificação não serão aceitos.