domingo, 10 de fevereiro de 2013

Artigo de Paulo Afonso Linhares


O MENSALÃO DE LINCOLN

Paulo Afonso Linhares

O maior cineasta norte-americano da atualidade, Steven Spielberg, trouxe às salas de cinema uma cinebiografia do mais popular presidente da história dos EUA, Abraham Lincoln, que impõe uma reflexão madura sobre episódios recentes acontecidos na jovem democracia brasileira, com enfoque nas relações entre os poderes Executivo e Legislativo que, naquela época e considerando-se o agravante que foi a Guerra Civil Norte-Americana, representou um duríssimo teste para a Teoria da Separação dos Poderes imaginada por John Locke, mas, definitivamente sistematizada pelo cartesiano filósofo Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689 - 1755), mais conhecido simplesmente como Montesquieu, o autor do alentado “O espírito das leis”. Com efeito, a pedra de toque das democracias contemporâneas é aquilo que pode ser chamado de “Modelo Locke-Montesquieu”, no qual os tradicionais poderes do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário – posto que autônomos, devem relacionar-se num estado de convivência harmônica, um controlando o outro através de um mecanismo de “balanços e contrapesos” (ou, na acepção original, “checks and balances”), de que falavam Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, os chamados “federalistas” do famoso texto em que discutem a natureza do governo republicano, publicado em 1787–88.

O filme de Spielberg enfatiza algo já de amplo conhecimento dos historiadores, relativamente à aprovação da Emenda nº 13, à Constituição norte-americana, que foi o esforço que a facção radical do Partido Republicano para sua aprovação com vinte inimagináveis votos democratas comprados a peso de ouro pelo staff de Lincoln e com inteiro conhecimento deste. Os republicanos radicais se opunham acerbamente à escravidão e, em suas fileiras, contava com Abraham Lincoln que, em 04 de março de 1861, se tornaria o 16º presidente dos Estados Unidos da América, cuja eleição servira de estopim para a mais sangrenta guerra civil ocorrida no continente americano e que ceifou 600 mil vidas. Ressalte-se que Lincoln passou à História não apenas como o primeiro presidente norte-americano a acreditar e defender que os EUA representavam uma das mais profundas experiências da capacidade de um povo de se autogovernar, mas, pela garra e pureza com que defendia suas ideias libertárias, a ponto que era carinhosamente chamado por seus compatriotas de “Honest Abe”.

Terminada a refrega da aprovação da Emenda 13, que proibia a escravidão nos EUA ou onde quer que o Estado norte-americano exerça sua “jurisdição”, o deputado Thaddeus Stevens, brilhante orador e membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América, pelo 9º Distrito da Pensilvânia, ressaltou que, paradoxalmente, aquele que foi o maior momento do Congresso norte-americano no século XIX – a aprovação da Thirteenth Amendment, que tornou ilegal a escravidão ou servidão involuntária exceto, nesta segunda hipótese, como punição por crime – somente foi possível com a corrupção de deputados, que literalmente venderam os seus votos, patrocinada “pelo homem mais puro do mundo”, claro, o tenaz Honest Abe, o grande líder da nação norte-americana que conseguiu acabar com a Guerra Civil e reunificar as unidades federadas para formar o que hoje é o Estado mais poderoso do planeta.

Em suma, Lincoln patrocinou um típico “mensalão” para aprovar a 13ª Emenda à Constituição norte-americana. Eram excepcionalmente elevados e altruísticos os fins para justificar e absolver o meio. O assassinato de Lincoln pelo possesso John Wilkes Booth, em 14 de abril de 1865, decerto que foi motivado mais pelo repúdio ao fim da escravidão do que em razão do método pouco ortodoxo que “Uncle Abe” (outro “nickname” de Lincoln...) utilizou para captar os vinte votos (democratas) que faltavam para aprovação da matéria. Muitos dos que viram o filme de Spielberg talvez não tenham percebido que a atitude de Lincoln pouco difere daquela utilizada pelo governo Lula para aprovar as Emendas Constitucionais nº 41/2003 (Reforma da Previdência) e 42/2003 (Reforma Tributária), com prevalência do interesse público naquele como neste caso. Ademais, a então Suprema Corte daquele país jamais tentou espichar os couros dos partidários de Lincoln, encarregados de promover aquele “mensalão”. Com eles tudo bem. Afinal, “gente chique é outra coisa”, consoante perorava o filósofo Raimundo Sacristão, com aqueles lábios godês e os olhos esgazeados que se derramavam sobre os rapazotes nas novenas da antiga Treze de Maio... Mas, isto já é outra história.

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